sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"E, tu, videira? Por que me louvas? Mas se te cortei! Eu sou cruel, tu sangras: que pretende o
teu elogio da minha ébria crueldade?
“Tudo o que se tornou perfeito, tudo o que está maduro – quer morrer!”, assim falas.
Abençoada, abençoada seja a tesoura do vindimador! Mas tudo o que não amadureceu quer viver; oh, dor!
A dor diz: “Passa, momento!” Mas o que sofre quer viver, para tornar-se maduro e
prazenteiro e almejar –
Almejar algo mais longínquo, mais elevado, mais claro. “Quero herdeiros”, diz o que sofre,
“quero filhos, não me quero a mim”.
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O prazer, porém, não quer herdeiros, não quer filhos – o prazer quer a si mesmo, quer
eternidade, quer retorno, quer tudo eternamente igual a si mesmo.
Diz a dor: “Despedaça-te, sangra, coração! Caminha, perna! Voa, asa! Para a frente! para o
alto! Oh, dor!” Pois muito bem! Ânimo! Ó meu velho coração! – A dor diz: “Passa, momento!”
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Ó homens superiores, que vos parece? Serei um profeta? Um sonhador? Um ébrio? Um intérprete de
sonhos? Um sino de meia-noite?
Uma gota de orvalho noturno? Um eflúvio e fragrância da eternidade? Não ouvis o som?
Não sentis o perfume? O meu mundo acabou de atingir a perfeição, a meia-noite é também meio-dia –
A dor é também um prazer, a maldição é também uma benção, a noite é também um sol; ide
embora daqui, senão aprendereis: um sábio é também um louco.
Dissestes sim, algum dia, a um prazer? Ó meus amigos, então o dissestes, também, a todo o
sofrimento. Todas as coisas acham-se encadeadas, entrelaçadas, enlaçadas pelo amor –
E se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto
de ti, felicidade! Volve depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo –
Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então,
amastes o mundo –
– Ó vós, seres eternos, o amais eternamente e para todo o sempre; e também vós dizeis ao
sofrimento: “Passa, momento, mas volta” Pois quer todo o prazer – eternidade!"

Nietzsche, Zaratustra, p. 4

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